eu prefiro viver em cores
Fico imaginando o matemático britânico Isaac Newton, em 1660, observando a luz branca se desfazer em cores por meio de um prisma.
Oi, pessoal. Quanto tempo, né? Depois de algumas viagens, tô de volta.
Em uma visita à Cinemateca Francesa, onde vi uma exposição sobre os filmes de Wes Anderson, encasquetei com o papel das cores no cinema, na vida, nas emoções.
E é sobre isso que vou falar por aqui hoje.
Simbóra.
A cor é uma linguagem emocional, um fenômeno visual e uma vigorosa ferramenta artística. Tudo isso me veio à mente durante uma visita à Cinemateca Francesa, em Paris, onde uma exposição dedicada a Wes Anderson despertou em mim o desejo de falar sobre cores.
A gente sabe que as paletas de cores podem ser bons recursos narrativos que influenciam a percepção, a emoção e o significado de uma obra, seja no cinema, na literatura, nas artes visuais ou no design. Elas vão além da estética, atuando como ferramentas simbólicas e psicológicas que reforçam temas, caracterizam personagens e definem atmosferas.
Wes Anderson é um mestre da mise-en-scène — cenário, figurino, iluminação e personagens: cada detalhe visual parece meticulosamente "enpincelado" (de pinça e de pincel) dentro de um sonho simétrico. Tudo é sempre tão coeso que o próprio diretor parece ter saído de dentro de seus filmes.
A exposição, em cartaz até julho deste ano, organiza os filmes em uma linha do tempo cronológica, mas o que ficou comigo foi uma linha do tempo de cores. Começou com os amarelos e vermelhos entusiásticos de ”Pura Adrenalina”, passou pelo azul (do blazer) e o vermelho (da boina) do traje “Rushmore", e chegou a uma sala onde o papel de parede era o mesmo vermelho com zebras brancas da casa da família Tenenbaum. Sim, os figurinos principais de "Os Excêntricos Tenenbaums” estavam lá — inclusive o famoso dedo de madeira de Margot, exposto numa caixa de acrílico.
Mais adiante, os trajes azuis e as toucas vermelhas de "A Vida Marinha com Steve Zissou” e as malas alaranjadas de "Viagem a Darjeeling”. Em outra sala, os tons de amarelo, o rosa pastel e o verde profundo de "Moonrise Kingdom”, junto aos tons de cidra de "O Fantástico Senhor Raposo”, às combinações de rosa, vermelho, azul e roxo de "O Grande Hotel Budapeste”, e aos tons desbotados de "Asteroid City”.
A estética andersoniana estava toda ali: o peculiar e o nostálgico, as cores primárias, os tons pastel, a melancolia e o humor, a saturação elevada e as roupas combinando com dilemas existenciais. Tudo isso em esboços, maquetes, storyboards, cadernos de anotações e polaroids.
No meio dessa overdose estética, me veio à cabeça uma frase do pintor britânico David Hockney que sigo querendo tatuar: “I prefer living in colour” (eu prefiro viver em cores). Virou o título desta edição, aliás. Não consegui ver sua exposição em Paris com 456 obras! Ela abriu poucos dias depois da minha partida. Mas Hockney também habita um universo solar e cromático: as piscinas da Califórnia, as estradas de Yorkshire, as primaveras da Normandia. A luz impacta suas cores: azul piscina, verde limão, rosa chiclete e roxo, bem intenso.
Diferentemente de Wes Anderson, que monta seus ambientes como quem organiza caixas de brinquedos antigos, David Hockney parece mais interessado naquilo que cintila, mesmo que só por um instante.
Foi então que pensei no cineasta francês Jacques Tati. Sempre penso nele quando o assunto é cor, cidade e convivência — ou talvez ele tenha me vindo à cabeça porque comprei por lá um bloquinho de notas com sua silhueta.
O uso das cores em seus filmes, pra mim, ajuda a entender sua crítica e humoriza. Talvez por causa de sua relação com os cenários e arquitetura, cuidando de cada detalhe da produção, criando cenários fictícios que ironizavam o modernismo da França pós-guerra.
Como mostra o livro “The Definitive Jacques Tati”, seus espaços eram ao mesmo tempo reais e simbólicos — fruto de um trabalho feito em parceria com profissionais maravilhosos, como o diretor de fotografia francês Jean Bourgoin.
No filme “Meu Tio”, por exemplo, o contraste: de um lado, o bairro francês colorido e caótico de Monsieur Hulot — paredes antigas e tons terrosos, cinzas e ocres; do outro, a casa modernista dos Arpel — fria, esverdeada, quase monocromática, tentando parecer sofisticada com sua geometria limpa e sua ordem artificial.
Em sua dissertação, a pesquisadora Rita Martins analisa como o diretor francês usa contrastes cromáticos para opor dois mundos: a modernidade aparece cinza, fria e artificial, enquanto o bairro tradicional é quente, terroso e animado.
Já em “Playtime”, a paleta é dominada por tons frios — cinzas, azuis, metálicos — que envolvem a Paris modernista numa atmosfera de impessoalidade. Mas, assim como em “Meu Tio”, chega uma hora em que o caos irrompe: as cores acendem, o calor humano invade, e a ordem começa a desmoronar.
Foi nesse ponto que comecei a me perguntar: será que percebemos as cores, ou somos por elas percebidos? Porque há algo na cor que nos toma antes mesmo de virar linguagem.
O historiador britânico James Fox diz que a primeira camada da cor é a emocional. Antes de sabermos o nome ou algo mais sobre um tom, já sentimos algo ao vê-lo. Vermelho pode ser sangue ou paixão; azul pode ser céu ou melancolia. Mas, no fundo, o que eles são mesmo é reação química dentro do olho — e interpretação afetiva no cérebro.
O que é uma cor?
A pergunta é simples, mas a resposta, nem tanto. Ao tentar responder, sou inundada por séculos de descobertas, conceitos e debates. Isso porque a cor não é apenas um fenômeno óptico.
Ela ocupa um espaço ambíguo entre o que percebemos e o que experimentamos, transitando entre a análise científica e as construções culturais que a moldam. A cor vestiu reis e soldados, anunciou lutos e renascimentos, traçou fronteiras entre os que pertencem e os que ficam à margem.
Fico imaginando o matemático britânico Isaac Newton, em 1660, observando a luz branca se desfazer em cores por meio de um prisma. Antes disso, ninguém sabia que a cor não era uma propriedade dos objetos, mas algo que nasce do diálogo entre a luz, a superfície e, por fim, o olhar. Um exemplo simples: uma folha não é realmente verde. Ela apenas reflete o que recusa — o verde. A cor é o que resta da luz.
Antes de Newton, o filósofo grego Hipócrates já associava as cores aos humores do corpo, enquanto filósofo grego Aristóteles via tudo como uma disputa entre luz e escuridão. Séculos depois, o escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe propôs uma nova abordagem, levando em conta a experiência emocional e fisiológica das cores. Por mais científica que seja, a cor não se limita a ondas de luz — ela é viva, contínua e sentida.
No livro “O mundo de acordo com as cores”, James Fox propõe uma divisão da cor em três camadas. A primeira, afetiva: aquela reação instintiva, como o vermelho que aquece ou o azul que acalma. Em seguida, a camada social: as convenções — vermelho em sinais de alerta, branco como bandeira de paz. E, por fim, a simbólica, mais densa, com o roxo da realeza ou o preto do luto.
Para Fox, a cor é uma criação interna: “cada matiz que vemos ao nosso redor é, na verdade, fabricado dentro de nós — na mesma matéria cinzenta que forma a linguagem, armazena memórias, alimenta emoções, molda pensamentos e dá origem à consciência.”
Essa complexidade subjetiva torna impossível fazer uma leitura absoluta e universal da cor. Como lembrou o artista germano-americano Josef Albers, quando alguém diz "vermelho", cinquenta pessoas podem imaginar cinquenta tons diferentes. A cor é uma experiência única e pessoal — não há uma só maneira de vê-la ou senti-la.
Ao longo do tempo, a história da cor alternou entre períodos de "cromofobia" e "cromofilia". A padronização das cores evoluiu do livro do artista holandês A. Boogert até o sistema Pantone – ferramenta usada para garantir a reprodução consistente de cores em diferentes materiais e processos de impressão. No passado, os pigmentos naturais eram escassos e caros, acessíveis apenas aos mais ricos. Fox explica que, nos séculos 18 e 19, a descoberta de corantes sintéticos, como o malva, democratizou o uso da cor, tornando tons antes exclusivos — como o roxo e o magenta — acessíveis a um público mais amplo. Hoje, com mais de 40 mil pigmentos catalogados, as cores estão ao alcance de quase todos.
Mas a cor também é uma construção cultural, carregada de simbolismo moldado por fatores históricos, religiosos, sociais e geográficos.
Pense na cor preta, por exemplo. No “Pequeno Livro das Cores”, a pesquisadora britânica de psicologia das cores Karen Haller conta que, no Ocidente, o preto é associado ao luto, enquanto na Espanha simboliza devoção no casamento. Na África, representa sabedoria, no Japão, mistério, e na Índia, afasta o mau-olhado. O preto já foi cor da morte, do pecado e do desespero, mas também da sofisticação, da elegância e do poder — a ponto de se tornar "o novo preto".
No Ocidente, vermelho pode ser paixão, mas na África do Sul é luto. O verde simboliza dinheiro nos EUA, fertilidade no Oriente, ciúmes na Inglaterra, morte em partes da América do Sul e boa sorte na Irlanda. E, quem diria, o rosa já foi um tom que os meninos usavam sem nenhum problema, até que o mundo decidiu que ele não era mais só uma cor.
Esse simbolismo cultural é um dos motivos pelos quais as tentativas de aplicar uma "psicologia das cores" de forma padronizada, especialmente no marketing e no design, podem falhar ao tentar capturar a complexidade das reações humanas. As respostas emocionais a uma cor não são apenas culturais — são também individuais, influenciadas por experiências pessoais, contextos emocionais e até fatores neurobiológicos.
E a cromoterapia? Surgida no século 19, ela mistura ciência e crença, apostando nas cores como agentes curativos. O americano Edwin D. Babbitt, um dos principais nomes da área, acreditava que as cores poderiam agir numa relação simbiótica entre cor e cura — uma ideia que, até hoje, permanece envolta em ambiguidades.
Mas as cores podem, sim, afetar nosso estado emocional,como sugere a psicologia das cores. Nos anos 1970, por exemplo, o pesquisador americano Alexander G. Schauss descobriu que o rosa Baker-Miller reduzia a agressividade e a força física de jovens. Em centros de detenção, pintar as celas com esse tom diminuiu incidentes violentos.
Para finalizar a edição de hoje, deixo vocês com um dado curioso que Fox trouxe em seu livro: 8% dos homens não veem as cores da mesma forma que as mulheres. Por outro lado, algumas mulheres podem ter uma sensibilidade extra, o que talvez permita perceber mais tonalidades — embora essa questão ainda seja um tema de debate.
Pera, e você sabia que cerca de 8% dos homens e 1% das mulheres possuem algum tipo de deficiência na percepção de cor? Quem disse isso foi a Pantone.
☞ links
☞ livros
“O mundo de acordo com as cores”, James Fox
“Pequeno Livro das Cores”, Karen Haller
“A Vida Secreta das Cores”, Kassia St. Clair