Varais
Hoje quero indicar Clothesline (varais, em inglês), um curta de Roberta Cantow de 1982 que descobri há pouco e achei gênia, apenas! Haha.
Hoje quero indicar Clothesline (varais, em inglês), um curta de Roberta Cantow de 1982 que descobri há pouco e achei gênia, apenas! Haha.
O filme é sobre roupas comuns, do dia a dia. Lençóis, toalhas, meias, camisetas. Tecidos lavados e pendurados no varal. Mas junto deles, o que se estende são histórias: de infância, de cuidado, de maternidade, de gênero.
Mulheres de diferentes idades, em Nova York, falam sobre lavar e secar as roupas da família. Um gesto que parece banal, repetido mil vezes, todo-santo-dia: a coreografia enfadonha (e às vezes poética) do rito doméstico. Estão ali o humor, a raiva, o lamento. E também um certo luto.
Uma mulher diz que o marido nunca a ajudou em casa, e então reflete:
“Fiz isso por anos. E agora vejo mulheres jovens fazendo a mesma coisa — e penso: como é que eu achava que era moderna… e fui tão burra, de fazer tudo aquilo com a sensação de que era minha obrigação?”
Outra lembra:
“Minha mãe não deixava o marido nem encostar na roupa lavada.”
E uma terceira confessa:
“Como poderia calcular a profundidade da paz e da segurança? Esse ritual de limpeza semanal havia acumulado em mim uma paz e uma segurança que os anos subsequentes haviam destruído”.
O varal, aqui, não é só utilitário. É espaço social e vitrine involuntária. Nele se penduram roupas íntimas e panos compartilhados, mas vergonhas, julgamentos, expectativas e desejos também são estirados.
Uma mulher conta que organizava tudo por cor, e na hora (!) me lembrei da vizinha do Marcio, em Lisboa. Quando o visitei, acordava e logo ia para a janela apreciar seus varais. Eram perfeitos, paleta de cores harmônica, aquele degradê de tons milimetricamente pensados.
*pedi para o Marcio me mandar uma imagem da vizinha, olha que lindeza! [dá o play!]
Voltando ao curta…
Tem até a fiscal de varal, que vê os sutiãs pretos da vizinha pendurados e solta: “só pode estar se engraçando com outro”.
E há quem diga:
“Eu odiava lavar roupa com uma paixão que você não consegue imaginar. Era... era um nó na minha garganta. Era a única coisa da qual nunca conseguia me livrar. Todo dia havia uma nova pilha. Mas eu odiava lavar roupa porque nunca terminava. Era uma eternidade, todos os dias. E era o pior fardo que já conseguia me lembrar.”
Outra diz:
“Quando olho os varais de outras mulheres, quero saber mais sobre elas. Se o seu filho tivesse uma mancha na roupa, acredite, você era a pior mãe do mundo. Se o marido tivesse uma mancha na camisa, você era uma péssima esposa!”
Há também os conflitos. Uma mulher fala da mãe, que brigava com os vizinhos do andar de cima porque a água da roupa deles pingava na roupa dela.
“Ela dizia: espera eu recolher as minhas, porque a água de vocês tá pingando na minha roupa.”
O varal, seja no pátio ou no terraço, era lugar de encontro, de conversa fiada, de notícia urgente: quem morreu, quem casou, quem caiu da bicicleta.
Essa parte me fez lembrar da minha mãe. ❤️
“Ela era realmente perfeccionista, e encontrou uma forma de extravasar esse perfeccionismo no jeito como cuidava das roupas. Havia um ritual muito rígido sobre como as roupas deveriam ser dobradas, guardadas, separadas, e isso tudo era feito com uma habilidade, um cuidado, quase uma maestria. Mas ela não gostava de fazer isso, é importante dizer, ela não tirava prazer daquilo. Era quase como uma arte, a forma como ela fazia. E… sinto muita falta do cheiro das roupas, da rigidez dos lençóis. Ainda consigo ouvi-la, na minha cabeça, me dizendo como dobrar direito e por que não estava bom o suficiente. A memória desse cuidado e a falta que isso faz ainda são muito fortes. Sim, era uma rotina. Você sabia que tudo estava feito, tudo resolvido pra você. Era um tipo de segurança.”
Outra mulher descreve as cortinas de renda da mãe:
“Ela tinha cortinas de renda, sabe? Aquelas cortinas de ‘rendas irlandesas’ e elas precisavam ser esticadas em molduras enormes, com preguinhos em toda a borda. Isso levava horas e horas e horas. E você precisava passar açúcar nelas para que ficassem duras. Algumas mulheres usavam goma, mas muitas usavam açúcar.”
E então conta, rindo, o que fez com as suas:
“O que eu fiz com as minhas foi diferente… Acabei manchando as minhas. Então, em vez de usar a mistura de açúcar e água, usei café ou chá e tingi tudo de marrom. Ainda as tenho. Nunca lavei. Ela morreria se soubesse disso, depois de todo o trabalho que teve para fazer aquelas cortinas.”
Há quem associe o varal à sorte:
“As pessoas liam sua sorte pelo seu varal”.
E quem fale de espíritos:
“Minha mãe lavava roupa, ainda lava, às seis da manhã, pra que estivesse seca à tarde, porque os italianos costumavam dizer que, se você deixasse a roupa no varal depois que escurecesse, ela não prestava mais: o diabo entrava nela. Todos os maus espíritos se infiltravam. Então as roupas tinham que estar dobradas antes do anoitecer.
E esta aqui, talvez minha preferida:
“Eu lavava roupa todo dia. A gente trocava a roupa da criança umas três vezes por dia. E aí ele [o marido] chegava em casa e perguntava:
— ‘O que você fez o dia todo?’
Dava vontade de ter um derrame. De verdade, você podia ter um derrame. Eu pensava comigo mesma: quão estúpido alguém pode ser? Quer dizer, ele não era surdo, nem mudo, nem cego. Estava em casa no café da manhã. Voltava pra almoçar e estava em casa todo dia pro jantar. E ainda assim me perguntava: ‘o que você fez o dia todo?”
Assiste o documentário pra ouvir o resto dessa história. Não darei spoilers. Haha!
Tá aqui:
Clotheslines no Folkstreams
Bom,
isso foi na Nova York dos anos 1980, mas sempre que penso em roupas ao vento, penduradas entre um prédio e outro, lembro de Nápoles, na Itália.




Em Nápoles, pendurar roupas ao ar livre, entre janelas, por vielas estreitas, é uma prática antiga, enraizada na arquitetura e na cultura popular da cidade. Em 2022, após a prefeitura cogitar proibir varais nas sacadas por causa de ‘pingos’, a reação popular foi imediata e o prefeito teve que recuar. A ideia, vista como ataque ao cotidiano e ao imaginário napolitano, virou polêmica nacional e levantou um debate sobre o que se entende por ‘decoro urbano’.
No Brasil,
também encontrei documentários sobre o tema, como “As Lavadeiras: o viver das águas”, de Ana Beatriz Barbosa Ferreira, que traz a história das lavadeiras de Arroio do Sal, no Rio Grande do Sul.
A cerca de 3 mil quilômetros dali, às margens do Rio São Francisco, as lavadeiras da Ilha do Ferro, em Alagoas, são retratadas pela cineasta Vera Rocha Oliveira. Infelizmente, só encontrei o trailer do filme, mas deixo aqui o registro, caso alguém se interesse.
Fotografias de varais
tem aos montes, né?
“Publicado em 1900 pela Detroit Photographic Company, ‘A Monday Washing, New York City’ é muito mais do que uma imagem deslumbrante e nostálgica. A cena retrata o que era típico das chamadas ‘segundas-feiras de lavagem pesada’, um costume semanal que se estendia por toda a cidade nos edifícios de cortiço do final do século 19 e início do século 20. Fileiras abundantes de roupas eram estendidas em varais altos, cruzando as fachadas dos prédios, acima das ruas. Unindo os lares na então comum prática de pendurar roupas para secar ao ar livre, com os tecidos balançando ao vento.”
Fonte: 20x200
Segundo o Museu da Cidade de Nova York:
“Sobrepondo-se em uma rede complexa, cada linha de roupas funciona como um censo doméstico, revelando idade, tamanho da família e status social. Lençóis, roupas de baixo e meias femininas penduradas em fios finos aludem a corpos ausentes”.
Fonte: Museu da Cidade de Nova York
E essas de Nápoles?
Fonte: Flickr
Fonte: Art Photo Limited